XIV Seminário Nacional e V Seminário Internacional Mulher e Literatura

  4 a 6 de agosto de 2011, Brasília

VOZES NOS TAMBORES - HOMENAGEM ÀS ESCRITORAS AFRO-BRASILEIRAS

MIRIAM ALVES



Foto tirada em Brasilia no seminário 2011.
Em pé da esquerda para a direita:
 Geni Gurimarães (pesquisadora), Ana Maria Gonçalves (escritora), Miriam Alves (escritora), Doris Gilluiam (pesquisadora, EUA),
Sentadas da esquerda para direita:
 Esmeralda Ribeiro (escritora), Lia Vieira (escritora) Vera Duarte (escritora, Cabo Verde), Lívia  Nátalia (escritora).

Alguma coisa me apoquentava não sabia bem o que era, mas causava um mal estar da boca do estômago com onda de náuseas que num crescendo preenchia a boca com saliva amarga e incomoda. O pensamento em engolir aquele líquido gerado nas minhas vísceras causava-me repulsa. Não podia engolir era como se levasse de volta para o interior do meu corpo o travento que ele expurgava. Numa paralisia própria destes momentos intensos tentei reter a baba crua que se avoluma até alcançar o céu da boca, no entanto a inutilidade desta ação me fez buscar o motivo. E após reflexão um tanto quando dolorosa por advir de emoções que não encontravam palavras para se expressarem e acalmar o torvelinho interior lançando no papel de forma lógica e em frases compreensiva o que eu e não conseguia digerir. Afinal depois de tanto tempo nós as escritoras negras estávamos sendo homenageadas por uma escrita que um pouco mais de duas décadas antes era questionada e tida como inexistente enquanto qualidade, especificidade e extensão literária.

Quem não gosta de aplauso e reconhecimento? Quem? Mesmo que seja nos recantos mais escondidos do seu interior, lá aonde só Freud explica, ou tenta explicar. Então reli, reli e reli a nota no Caderno de resumo do XIV Seminário Nacional de Mulher e Literatura/ V Seminário Internacional Mulher e Literatura, que significativamente ostenta o título de Palavra e Poder.

Homenagem às escritoras afro-brasileiras
O Seminário Nacional Mulher e Literatura abriga a tradição de, a cada evento, homenagear nomes expressivos da literatura de autoria feminina.
Ao longo de sua história, foram contempladas desde nomes consagrados – como Clarice Lispector, Rachel de Queiroz, Adélia Prado e Maria Teresa Horta, até escritoras menos estudadas – a exemplo de Laís Corrêa de Araújo, Gilka Machado, Diva Cunha, Myriam Fraga e Helena Parente Cunha.
A nova edição do Seminário propõe um gesto mais amplo, ao homenagear não figuras individuais, mas o coletivo de escritoras brasileiras de descendência africana, tomadas enquanto símbolo do resgate de uma escrita duplamente segregada: em termos de gênero e de etnicidade.

Pensei na minha mãe Benedita Severino, nos seus ensinamentos e de como ela ficaria orgulhosa da filha que ela estimulou e se empenhou para que estudasse e fosse “alguém na vida”, me alegrei em imaginar o seu sorriso senti o calor de seu abraço vindo lá do lugar reservado a ela na ciranda da ancestralidade e chorei. É certamente ela se alegraria e me questionaria a aparência de preocupação refletida no meu semblante, e não sei se a ela eu saberia dizer, ou simplesmente me aconchegaria nos seus braços ouvindo o som de seu coração se misturar com o meu acelerado. Passado este momento pensei na palavra empoderamento que a pensadora teórica negra Sueli Carneiro pontua nos seus textos e livros, ai novo torvelino tomou o lugar da aparente tranqüilidade que as lembranças de minha mãe tinham trazido. E percebi depois de dialogar com o livro Lugar de Negro de outra pensadora negra Lélia Gonzáles, que nestas palavras poderiam estar o balsamo para o desconforto. Então como num acalanto de cantigas de acordar fizeram sons dentro dos meus pensamentos. Empoderamento Tum-tum. Lugar de negro Tum-tum-tum e foram num crescente somando as vozes todas que guardo com carinho no baú das emoções e sentimentos.
Tum-tum e de novo Tum-tum somando-se palavras as de outra pesquisadora negra Fernanda Rodrigues Figueiredo ao se referir a escritura das escritoras negras:
 “O papel das escritoras é escrever e inscrever a memória do povo negro pelo olhar de dentro; um olhar que recusa as omissões que a sociedade brasileira, sob a égide do mito da democracia social e racial, impôs e ainda impõe á população afrobrasileira.” ( 2009, p.105).
 Refleti sobre o meu papel de escritora. E voltei a ler o texto explicativo da Homenagem às escritoras afro-brasileiras. Arrepio, calafrio e uma leve tonteira a boca se entreabriu e deixou escorrer em conta gotas a baba amarga que guardada. Pingo e pingo respingando.  Quem não gosta de aplausos e reconhecimento? Quem? E as minhas colegas em homenagem estavam todas recebendo no coletivo e ao mesmo tempo. Conceição Evaristo, Esmeralda Ribeiro, Lia Vieira, Geni Mariano Guimarães, Cristiane Sobral, Ana Maria Gonçalves. Com as quatro primeira compartilhei com intensidade, no passado quando ainda íamos uma na casa da outra, as emoções, indagações, alegrias e tristeza, realizações e dúvidas, angústias e alegrias, e as expectativas de saber aonde o diferencial do nosso escrever mulher negra revelado na expressividade dos fatos e das emoções protagonizados a partir do ponto de vista vivencial do negro/negra afro-brasileiro/brasileira enquanto referencial de ação, nos levaria. Falas que distintas dialogam e se interpenetram em interfaces. Então era esta representação, que recebia as homenagens juntamente com as vozes de Cristiane Sobral e Ana Maria Gonçalves, estava perfeito vindo de encontro aos meus anseios e ações registradas não só no trabalho ficcional e poético, como também na organização de duas antologias de mulheres negras escritoras, além dos textos com propostas ensaísticas. Estranhamente ao chegar a esta conclusão não me sentia confortável ainda, talvez mais aliviada. A boca se abriu mais uma vez é pingo, pingo e respingo liberando algumas gotas ácidas da baba que retivera. Mas ainda não foi o suficiente, voltei a ler a nota explicativa proposta na homenagem. E a orquestra de tambores ritmava pensamentos, vozes e acrescentando acordes e mais acordes fazendo formar palavras que teimosas se debatiam. E uma das irmãs, malungas do que um dia chamamos de Confraria das Cartas Negras veio alimentar-me a certezas nos seguintes versos:

                                               A noite não adormece
                                               nos olhos das mulheres,
                                               a lua fêmea semelhante nossa,
                                               em vigília atenta vigia
                                               a nossa memória.

                                               A noite não adormece
                                               nos olhos das mulheres,
há mais olhos que sono (...)
 (Conceição Evaristo)


           E a noite não adormecia nos meus olhos, estatelados em insônias os meus pensamentos inquietavam-se. Tínhamos conseguido fazer valer as palavras em nossos textos. Tínhamos conseguido e melhor no coletivo, faltavam algumas nesta homenagem. Algumas não! Muitas e muitas outras vozes! Acredito que pelo tamanho da fome sempre faltaram e faltarão vozes neste coral, muitas vozes foram silenciadas ou apagadas com discursos teóricos ou não, de questionamento da qualidade e importância literária para o cânone como a de Carolina de Jesus. Vozes que dizem o que não querem ouvir. Vozes que refletem verdades de um lugar que não se quer ver. 
           Vozes que falam...   Vozes que, quando não dá para não ouvir, tenta-se cooptar com apagamentos e interpretações suavizadoras o que há de mais angustiante para os cânones – status -sociais. Vozes entre tantas que me povoam ouço a do poeta e escritor falecido recentemente Arnaldo Xavier quando no I Encontro de Poetas e Ficcionistas Negros em São Paulo, indagava: “Qual a atitude que tomaremos no coletivo de escritores quando a mídia acadêmica e outras tentar pinçar um de nós como o melhor, em detrimento aos demais e a voz coletiva que estamos fazendo? Qual a atitude política que tomaremos? Sabemos que esta é uma estratégia muito usada. O que fazer?”
           E de novo a boca se abre e libera a baba crua que a inunda num quase afogamento, mais pingo, pingo e respingo. Novo alívio, eu estava quase dando forma às palavras inquietantes que saltavam das entrelinhas daquele texto que diz: “A nova edição do Seminário propõe um gesto mais amplo, ao homenagear não figuras individuais, mas o coletivo de escritoras brasileiras de descendência africana, tomadas enquanto símbolo do resgate de uma escrita duplamente segregada: em termos de gênero e de etnicidade.” Estava quase, mas alguma coisa ainda impedia. O que? Dizer ou não dizer. Escrever ou não escrever. Numa equivalência ao conhecido ser ou não ser. Com a equivalência na assertiva escrevo logo existo. No meio disto tudo ainda rodopiavam pensamentos da representação individual e a representação coletiva de cada uma daquelas mulheres homenageadas. E num esforço de alocar palavras, lembrei daquela tarde chuvosa e fria em São Paulo quando reunidas pela força mágica do fazer literatura percebemos o que tínhamos de semelhante, e depois de muito riso descontração e propósito de fazer uma Confraria das Cartas Negras na qual pudéssemos compartilhar e grafar nossa especificidade de mulher negra e escritora nós gritamos em uníssono: “Ainda bem que a gente escreve”, o que se tornaria um grito de guerra que para sempre nos acompanharia, que para o contexto deste seminário eu traduziria para: “Ainda bem que temos o poder da palavra”.  
              
Voltando a questão do coletivo, que é uma palavra usada no singular e designa várias pessoas, mas que no caso de várias escritoras negras não anula a singularidade de nossas palavras, textos e livros. Mas em se tratando de negras e negros a palavra coletivo nos retrata como massa amorfa sem face definida, sem vozes definidas, sem sentimentos próprios. A nossa ação coletiva como escritoras negras tem uma ação que em si busca redefinir olhares, redefinir julgamentos e ações de toda uma sociedade, não só sobre a nossa escrita, como também para o outro coletivo. O coletivo de mulheres negras anônimas. Quase sempre representadas nas estatísticas que elencam perdas, dores e ausências principalmente as materiais, nós as escritoras negras com nossas palavras tiramos estas perdas, dores e ausências da estática imprimindo não só um rosto, não só, nós designamos, apontamos o lugar, e principalmente alocamos sentimentos vidas. Sentimentos humanos. Vidas humanas.
É bom ser homenageada é gostoso. Principalmente num Seminário de Mulheres e Literatura no qual representa estar identificada com as questões de gênero – eu me identifico – estar identificada com as questões do fazer literatura na voz mulher – eu me identifico – ver os lugares que minha mãe Benedita Severino nunca entrou pelo portão da frente se abrir para nós mulheres negras escritoras, estavam se realizando a fantasia, quase alucinação, de D. Benedita Severino: “Eu limpo os pratos, varro o chão da casa dos brancos para você e nem seus filhos terem que fazer isto um dia. Você vai ser gente.”  Palavras acompanhadas pelo contraponto do meu pai Mauricio Alves: - “Não seja mais um rosto anônimo na multidão.”Então porque esta baba crua resistente em preencher minha boca? Por que esta inquietação? Por quê? A boca se abre e por entre - lábios escorrem mais um pingo cáustico desta baba cruenta que não consigo engolir.E de novo ouço: Vozes tambores. Vozes que interrogam. Vozes que alertam. Vozes em acalanto nas cantigas de não dormir.  Vozes em cantigas de acordar. E dentro de meus pensamentos – sentimentos – emoções, sinto a necessidade de dialogar com elas:
DIÁLOGO COM AS VOZES
                        Ao escritor poeta, pensador, um ser inquieto, inquisitivo: Arnaldo Xavier, digo: - Amigo não pinçaram um nome só. Não deixamos. Estamos aqui as sete falando usando nossa singularidade falando em nossos próprios nomes e do lugar coletivo do lugar que representamos. Afinal amigo quem não gosta de aplausos, de reconhecimento. Fica em paz!
                        Ao “coletivo de escritoras brasileiras de descendência africana,” que não são anônimas que tem nome história e singularidades, que neste texto deixo em negrito em corpo 14: Conceição Evaristo, Esmeralda Ribeiro, Lia Vieira, Geni Mariano Guimarães, Cristiane Sobral, Ana Maria Gonçalves. Digo: -Amigas de uma Confraria Ancestral que veio antes de nós, e vai continuar depois, somos várias vozes singulares que assumem força no coletivo, porque sabemos que: 
A noite não adormece
                                               nos olhos das mulheres, (...)
E precisaremos sempre, amigas, estar constantemente
em vigília atenta vigia[ando]
                                               a nossa memória.
E completo em negrito corpo 17:
 - Ainda bem que a gente escreve!
A Carolina de Jesus, digo: “nega é nóis” estamos atentas vigiando sua memória. Você foi sozinha para esta arena, mas não está só em seus pensamentos. A escritora Tula Pilar, que tem uma estória semelhante a sua, mandou um recado para você se acalmar quando falam da simplicidade de sua escrita e que você falava de seu lugar coisas suas:Pilar disse:
- Se Cora Coralina pode
Porque Carolina não pode
Porque é de Jesus

A Comissão que organizou esta homenagem digo: - É um prazer estar com nomes consagrados de homenageadas em edições anteriores, identificadas em gênero e atitude de escritura como os de:
 Clarice Lispector, Rachel de Queiroz, Adélia Prado e Maria Teresa Horta, até escritoras menos estudadas – a exemplo de Laís Corrêa de Araújo, Gilka Machado, Diva Cunha, Myriam Fraga e Helena Parente Cunha.
Por falar em nomes e sobrenomes, completo com uma pergunta que para a qual já tenho a minha resposta: - Por quê o nome de cada uma das homenageadas com histórias livros e abordagens literárias específicas não constam na nota no Caderno de resumo do XIV Seminário Nacional de Mulher e Literatura/ V Seminário Internacional Mulher e Literatura, que significativamente ostenta o título de Palavra e Poder? 
E como conseqüência no XV com certeza irão constar que neste XIV foi homenageado o “coletivo de escritoras brasileiras de descendência africana”, levando os mais curiosos a indagar: - Quem são estas negras mesmo?
E para Benedita Severino Alves, digo: - Obrigado pelo colo e pelo conselho para este texto. Ah! Mãe fica em paz eu não limpo a casa dos brancos. E mãe obrigado por severar e perseverar, só assim mãe, eu pude saber e sei que a palavra realmente é poder e:                                     
                                           Eu falo
A fala é um falo
que abre suas entranhas
atravessa suas certezas culturais