O CORPO NEGRO NA LITERATURA

PROGRAMAÇÃO ALUSIVA AO PALMARES 25 ANOS
20-09-2013- AUDITÓRIO MINC - SÃO PAULO - CAPITAL.

O CORPO NEGRO PELADO.

MIRIAM ALVES

Um corpo de uma mulher negra nua passeando em plena avenida movimentada de um bairro em São Paulo às 23 horas e 30 minutos, entre restaurantes populares e posto de gasolina e dois prédios apartamentos residenciais. Caminhava tranquilamente sua cor ebânica que refletia o brilho, que não sei se natural ou reflexo do neon das lâmpadas penduras nos postes enfileirados dos dois lados da rua e das luzes exageradas vindas dos estabelecimentos, em frente aos quais ela desfilava segura que seu trajeto não seria interrompido pelos olhos assustados, ou atos violentos de ninguém.

Ela e eu andando em direção opostas, sua nudez exposta, contrastava com minha nudez coberta em trajes cotidianos com o complemento de um agasalho de moletom, porque àquela hora da noite o friozinho da madrugada se pronunciava. Os meus olhos se atentaram no traçado triangular perfeito desenhado por pelos pubianos fartos encaracolados tendo como tela a confluência das coxas. Ela desfilava majestosa, passos lentos na face um ar de tranquilidade e confiança, ela vindo eu indo, quando os nossos caminhos se entrecruzaram os olhares por instante se encontraram. O meu olhar refletia espanto, encanto e um traço de perplexidade, nos olhos dela certezas, tranquilidade em contraste com um leve sorrir talvez sarcástico. Não sei definir o instante foi breve e rápido como a um relâmpago cruzando os céus.

Ao me distanciar, alguns passos, eu ousei olhar para trás e vi as pernas roliças e a bunda carnuda arredonda se movendo no caminhar como ondas oceânicas de superfície, ondulando, ondulando. E assim a mulher se foi na noite ondulando sua vestimenta pele natural, e eu me fui, na noite com o meu corpo acobertado por tecidos transformados em roupas que com a justificativa de me proteger me aprisiona. Os meus pensamentos libertos ondulando interrogações inquietações com a imagem gravada daquele corpo negro mulher ondulando nudez na avenida e nem era carnaval.

Aquela imagem da mulher nua andando pela rua, não me saiu dos pensamentos, me levou a refletir sobre a representatividade do corpo negro pelado em algumas situações em que se apresenta:
  1.     No cotidiano reservado das casas em que se despe para o encontro das confluências das coxas de um corpo no outro: corpo fêmeo em outro corpo fêmeo; corpo fêmeo em outro corpo não fêmeo, e as ondulações do bailado a caminho do êxtase e depois a mansidão.
  2.   Na violência da exibição pública para o deleite de consumistas sexuais da carne negra erotizada banalizada, vendida comprada.
  3.   No constrangimento que mesmo coberto por veste cotidianas é despido por olhares gulosos que implícita as intensões.
  4.   Na insatisfação, de muitas, de ter este corpo desenhado em conformidade com a natureza dos orixás e procurar outros contornos, outros espelhos e se transformar em caricaturas.
  5. Na valorização sexualizada da bunda como ela não fizesse parte de todo o corpo.
  6.  Na vitimização racista e sexista que este corpo vestido ou pelado é submetido na nossa sociedade.
  7.   Nas verdades ocultas ou expostas que o corpo negro pelado representa.

A mulher nua andando pela rua, sem mais nem por quês, me libertou se não para sempre, pelo menos naquele instante. Naquele instante parecia ser só nos duas. A mulher nua e eu completamente vestida caminhando sentidos opostos. Uma alegoria real, verdadeira acontecida ali na paralela que me levou ao ápice de um pensamento que vinha se formando há tempos como uma tempestade de ideias que troveja, relampeja, mas não deságua.

A mulher nua tranquila em seu caminhar parecia uma entidade enviada pelo Orixá Exu, com luzes refletidas na pele noite como olhos indicando caminhos, desvelando os vários signos de palavras racistas, machistas e outras que cobrem os nossos corpos negros como vestimentas eternas e naturais.

E o relampejar o trovejar da tempestade de ideia se intensificou, os ventos formaram um rodomoinho e a chuva de palavras me encharcou desfazendo os signos de vestes palavras alheias que insistem em me vender em modelos formais congelados coisificando a literatura negra que faço. E fui ficando nua com as gotas de chuvas vogais e consoantes reluzindo outros significados, redescobrindo outros signos que resinificassem a minha verdadeira nudez.


E ao olhar-me no espelho vi a mulher nua tranquila e me veio a mente uma frase de Nelson Rodrigues: “Toda nudez será castigada.” E a mulher nua sorriu; “Não toda nudez é exuziaca ”.